EL MUNDO EN QUE VIVIMOS
Estados Unidos e Rússia na África: uma nova Guerra Fria?
United States and Russia in Africa: a new Cold War?
Estados Unidos y Rusia en África: ¿una nueva Guerra Fría?
Dr. C. Guilherme Ziebell de Oliveira*
Doutor em Ciência Política. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. guilherme.ziebell@ufrgs.br 0000-0002-0118-6279
Dr. C. Anselmo Otavio
Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais. Professor da Universidade Federal de São Paulo, Osasco, Brasil.
otavio@unifesp.br 0000-0001-5560-4168
*Autor para correspondência: guilherme.ziebell@ufrgs.br
RECIBIDO: 14 de maio de 2025
APROBADO: 23 de junho de 2025
publicado: 7 de abril de 2025
RESUMO O artigo discute o incremento no interesse estadunidense e russo pelo continente africano no pós-Guerra Fria, com especial interesse para o século XXI, e visa a responder à seguinte pergunta: o contexto atual pode ser considerado como uma nova Guerra Fria no que concerne a atuação de EUA e Rússia na África? O objetivo é compreender quais os interesses e ações de ambas potências em sua reaproximação com a África nas últimas décadas. A pesquisa adota abordagem qualitativa, de caráter interpretativo, apoiada na análise de fontes primárias e secundárias, concluindo que a ideia de uma renovada Guerra Fria é equivocada.
Palavras-Chaves: África. Estados Unidos. Rússia. Política Externa
ABSTRACT The article discusses the increase in US and Russian interest in the African continent in the post-Cold War period, with special interest for the 21st century, and aims to answer the following question: can the current context be considered a new Cold War in terms of US and Russian actions in Africa? The aim is to understand the interests and actions of both powers in their rapprochement with Africa in recent decades. The study adopts a qualitative, interpretative approach, based on an analysis of primary and secondary sources, concluding that the idea of a renewed Cold War is mistaken.
Keywords: Africa. United States. Russia. Foreign Policy
RESUMEN El artículo analiza el aumento del interés de Estados Unidos y Rusia por el continente africano en el periodo posterior a la Guerra Fría, con especial interés para el siglo XXI, y pretende responder a la siguiente pregunta: ¿puede considerarse el contexto actual una nueva Guerra Fría en términos de las acciones de Estados Unidos y Rusia en África? El objetivo es comprender los intereses y acciones de ambas potencias en su acercamiento a África en las últimas décadas. La investigación adopta un enfoque cualitativo e interpretativo, basado en el análisis de fuentes primarias y secundarias, concluyendo que la idea de una renovada Guerra Fría es errónea.
Palabras clave: África. Estados Unidos. Rusia. Política Exterior
INTRODUÇÃO
Na Declaração Final da Segunda Cúpula Rússia-África, ocorrida em julho de 2023, a administração Putin destacou a importância dos países africanos e da União Africana (UA) na defesa do multilateralismo e no cenário internacional. Alguns meses antes, em outubro de 2022, na Estratégia de Segurança Nacional (NSS), o governo de Joe Biden também já havia indicado a relevância do continente africano, simbolizado pela ativa participação em fóruns de caráter multilateral. Tanto a Declaração Final quanto a NSS destacam o desejo em fortalecer os espaços de diálogo com os países africanos. No caso de Moscou, a continuidade das Cúpulas com o continente se basearia na cooperação igualitária e benéfica para as partes envolvidas. Já Washington, a parceria seria pautada pela importância geopolítica dos países africanos (Putin, 2023; The White House 2022).
Esse destacado interesse das grandes potências pela África se dá em um contexto de crescimento das tensões entre elas, o qual é perceptível ao menos desde a primeira década do século XXI. Diante disso, para alguns, parece haver uma retomada da realidade que caracterizou as relações dessas potências com o continente africano ao longo da Guerra Fria. Naquele contexto, ainda que timidamente, seja atuando em processos de independência ou guerras de caráter civil ou proxy, seja construindo parcerias com países considerados estratégicos, o que se viu foi a presença de tais potências na África (Cardoso, 2020).
No caso estadunidense, a busca em conter o avanço soviético convergiu com o apoio às administrações Sadat e Mubarak no Egito, ao regime apartheid na África do Sul, ao auxílio à União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e à Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), em Angola e Moçambique, respectivamente, e na cooperação junto à Etiópia. Referente a Moscou, o apoio dado aos movimentos anticoloniais foi potencializado pela inexistência de laços soviéticos coloniais com o continente – o que permitia o estabelecimento de relações distintas daquelas proporcionadas pelas ex-metrópoles europeias – e pela capacidade (e disponibilidade) soviética de fornecer recursos materiais – como armamentos – aos aliados africanos (Clapham, 1996).
Diante desta renovação do interesse estadunidense e russo pelo continente africano, que o presente artigo busca responder à seguinte pergunta: o contexto atual pode ser considerado como uma nova Guerra Fria no que concerne a atuação de Estados Unidos e Rússia no continente africano? No intuito em responder o questionamento proposto, o presente artigo tem como hipótese que a ideia de existência de uma renovada Guerra Fria é equivocada, visto que, diferente do período de disputa bipolar, no século XXI os interesses de ambas as potências no continente africano são bastante distintos. Enquanto Moscou busca romper com o isolamento internacional e angariar apoio em fóruns de caráter multilateral, Washington objetiva conter o avanço de outras potências emergentes na África - especialmente a chinesa.
Em termos metodológicos, adota-se uma abordagem qualitativa, de caráter interpretativo, apoiada na análise de fontes primárias e secundárias. Além desta introdução, o artigo estrutura-se em outras cinco seções. Na primeira, apresenta-se uma revisão das relações russas e estadunidenses com o continente africano ao longo da década de 1990. Na segunda, esforço semelhante é feito com relação à primeira década do século XXI, demonstrando-se, assim, a reversão da tendência de afastamento, bem como as motivações de cada uma das potências para essas inflexões. A terceira foca-se na análise das relações e interesses russos e estadunidenses na África na década de 2010, demonstrando as linhas de continuidade e também os ajustes operados. Já a quarta centra-se na análise do período mais recente, focando-se nas relações dos governos de Joe Biden e Vladimir Putin com o continente africano. Por fim, na última seção são apresentadas considerações finais, nas quais buscamos fazer uma síntese da argumentação apresentada, ressaltando não apenas os elementos que motivam o incremento de relevância da África para ambas as potências, mas também demonstrando que este não é motivado por uma disputa direta entre as duas, mas sim por objetivos que vêm sendo traçados e reforçados desde o início do século - tornando, portanto, equivocada a ideia de uma nova Guerra Fria.
DESENVOLVIMENTO
Yeltsin, Clinton e a marginalização do continente africano
O término da Guerra Fria e o colapso da URSS foram acompanhados pela ascensão de Boris Yeltsin, administração caracterizada pela aproximação com o Ocidente, pela assimilação à Ordem Internacional Americana e por uma transição para uma economia de mercado1. No que concerne a política pró-Ocidente, a Rússia passava a aceitar a democracia liberal como modelo político primordial, a não mais buscar, no campo militar, a paridade com os Estados Unidos, dentre outras escolhas que levaram o país a se aproximar da União Europeia e a fazer parte do até então G7 e do Fundo Monetário Internacional (Donaldson, 2000). A reformulação da economia russa foi marcada pela privatização das empresas estatais, pela abertura da economia para o comércio exterior, pela diminuição da oferta de moeda e dos gastos governamentais e pelo atrelamento do rublo ao dólar. Dentre as consequências de tais escolhas, estiveram a diminuição da produção industrial, o aumento da desigualdade social, a fragilização das instituições democráticas e o surgimento das chamadas oligarquias (Desai 2005).
As escolhas adotadas pela administração Yeltsin culminaram em um desengajamento abrupto do continente africano, que passou a ocupar – assim como o restante do Sul Global – um espaço periférico na política externa russa (Olivier y Suchkov, 2015). Isso ficou claro com o lançamento, pelo governo russo, em 1993, de um documento intitulado Russian Federation’s Foreign Policy Concept. O documento, espécie de Livro Branco de política externa, cuja função seria definir as prioridades e os objetivos internacionais do Kremlin, apresentava, entre outros, uma lista das dez regiões de maior relevância para os interesses do país. Enquanto em primeiro lugar estavam os países da Comunidade de Estados Independentes, os EUA se encontravam em quarto, a Europa em quinto, a China em sexto e a África em nono, à frente apenas da América Latina (Fidan y Aras, 2010).
Os reflexos dessas mudanças se mostraram bastante concretos. Para além de uma redução substancial das relações comerciais (que em 1990 atingiam a marca de US$1.3 bilhões, e em 1994 eram de apenas US$740 milhões), o governo russo abandonou projetos conjuntos que estavam em desenvolvimento (como uma planta de produção de aço na Nigéria) e suspendeu o apoio financeiro e as linhas de crédito disponibilizados aos países africanos (Fidan y Aras, 2010; Faleg y Secrieru, 2020). Ainda, o governo Yeltsin, apoiado por parte da mídia e dos políticos pró-ocidente na Rússia, que defendiam que as relações com a África eram um peso para a economia russa, passou a pressionar os governos africanos para que saldassem as dívidas que tinham sido contraídas junto à URSS, as quais somavam cerca de US$16 bilhões (Besenyő 2019).
Nesse mesmo contexto, em 1992, o governo russo promoveu o fechamento treze dos vinte centros culturais então mantidos no continente africano, bem como de nove embaixadas e três consulados – além de reduzir substancialmente o pessoal nos postos que foram mantidos (Duursma y Masuhr, 2022; Marten, 2019). O resultado dessas ações, todavia, apenas contribuiu para incrementar o distanciamento entre os países da África e a Rússia. Não apenas diversos governos africanos promoveram uma redução do número de representantes em Moscou, como também a Rússia passou a ser vista como um país que “virara as costas” para a África, o que redundou em uma diminuição substancial de seu prestígio entre os países africanos (Besenyő, 2019).
Uma inflexão nas relações russo-africanas teve início na segunda metade da década de 1990, quando o então Ministro das Relações Exteriores, Andrei Kozyrev, foi substituído por Yevgeny Primakov. Diferentemente da busca pela proximidade com o Ocidente defendida por Kozyrev, Primakov considerava que a Rússia ainda era uma grande potência e o seu modo de atuar no cenário internacional deveria estar pautado na aproximação com outros países ou regiões-chave para os interesses russos (Gruzd, Ramani y Clifford, 2022). Notório conhecedor dos países e dinâmicas do Terceiro Mundo, Primakov logrou promover, em 1997, as primeiras visitas de lideranças africanas a Moscou desde o colapso da URSS2 – Hosni Mubarak, do Egito; Eduardo dos Santos, de Angola, Sam Nujoma, da Namíbia; e, Thabo Mbeki e Nelson Mandela, da África do Sul – dando início a um período de progressivo incremento nas interações diplomáticas entre a África e a Rússia (Arkhangelskaya y Shubin, 2013).
Essa tendência em se distanciar e, posteriormente, se aproximar do continente africano também pode ser encontrada na administração Clinton (1993-2001), cuja política externa, comumente referenciada como Engajamento e Expansão (E&E), defendia a promoção dos valores democráticos e do neoliberalismo por todo o sistema internacional; mostrava-se favorável a repressão de hostilidades realizadas por determinados Estados à democracia; e a valorização de uma agenda humanitária (Pecequilo, 2011). Embora este contexto, aparentemente, gerava certa expectativa de que os EUA iriam atuar na África, uma vez que, direta ou indiretamente, o continente se enquadrava nos pontos defendidos pelo E&E, em verdade o que se viu foi a marginalização do continente, tendo o conflito entre Hutus e Tutsis em Ruanda (1994), como seu principal exemplo (Otavio, 2021).
Evidentemente que o conflito ocorrido em Ruanda foi marcado pelos números trágicos que envolveram tal genocídio, destacadamente ode assassinatos (aproximadamente 11% da população), de refugiados vivendo em países vizinhos (2 milhões) e de deslocados internos (1 milhão) (Otavio, 2021) No entanto, outro ponto importante nesta guerra diz respeito ao descaso da administração Democrata, desinteresse representado pela não sinalização de que Washington doaria veículos de movimentação tática esperados pelos países africanos interessados em cessar o conflito, e sim, arrendá-los às Nações Unidas pelo montante de US$15 milhões (Thomson, 2018). Em linhas gerais, o desdém com relação a Ruanda corroborava com uma das características dos governantes estadunidenses, qual seja, de equilibrar a política externa com as prioridades internas (Schraeder, 2018). Logo, vale relembrar que desde a morte de 18 soldados dos EUA sob a égide da UNOSOM II, na Somália, a opinião pública pressionava Washington a atuar apenas em países considerados relevantes, grupo em que os países africanos não se enquadravam (Cardoso, 2020).
A mudança de percepção acerca do continente africano ganhará destaque nos anos finais da administração Clinton, destacadamente com o advento da African Growth and Opportunity Act (AGOA), em 2000. Iniciativa criada para intensificar as relações entre os EUA e 34 países da África Subsaariana, e com prazo de validade até 2008, a AGOA pode ser destacada por duas características. A primeira diz respeito ao seu enquadramento em uma das prioridades da E&E, no caso, o neoliberalismo, visto que Washington aceitava isentar de taxas a entrada de produtos têxteis desenvolvidos no continente, e, em contrapartida, esperava reciprocidade. Já a segunda característica se refere às condições impostas aos países africanos, que teriam seus produtos têxteis isentos de taxas se estes fossem desenvolvidos com fios, ou tecidos procedentes da indústria norte-americana. Deveriam, ainda, respeitar a propriedade intelectual, a democracia, os direitos humanos e o combate à corrupção e não estar envolvidos em atividades que simbolizassem ameaças aos EUA (Otavio, 2021).
Bush, Putin e o retorno do interesse pela África
A importância da AGOA para as relações EUA-África se mostrou constante ao longo da administração Bush, inclusive, tendo sua validade foi estendida até 2015. No entanto, diferentemente do período de vigência do governo Clinton, quando a AGOA era uma tentativa de fazer os Estados Unidos voltarem a ganhar espaço no continente, ao longo do governo Bush, tal expansão caminhava lado a lado ao cenário internacional pós-atentados de 11 de setembro de 2001. Neste caso, a política externa passava a ser influenciada pela chamada Doutrina Bush que, junto ao combate ao o Terrorismo internacional (GcT), trazia como instrumentos para tal finalidade a necessidade de garantir a legitimidade aos EUA em atuar de modo unilateral no sistema internacional, bem como em construir ou fortalecer parcerias para tanto (Ikenberry, 2002). Diante deste cenário, o que se viu foi a ampliação - ou criação - de iniciativas que, direta ou indiretamente, eram voltadas ao continente africano (Otavio, 2021).
Indiretamente, destacam-se a criação do Millennium Challenge Corporation, de 2004 (desenvolvimento econômico), o Fundo Global de combate à tuberculose, malária e ao HIV/AIDS, e o Plano de Emergência Presidencial de Combate à AIDS (PEPFAR), iniciativas que não eram exclusivas para a África, mas assistiram diversos países do continente (Tieku, 2018). Diretamente, o âmbito da segurança se mostrou protagonista, cujas iniciativas estiveram relacionadas à GcT, porém não necessariamente às demandas securitárias dos países africanos. Exemplos disso podem ser encontrados nos programas Foreign Military Sales (FMS) e Foreign Military Sales Financing (FMF), ambos voltados para facilitar a venda de armas e de equipamentos militares para aliados de Washington via provisão de créditos que, entre 2004 e 2005, passou de US$25.6 milhões para US$61.5 milhões (Klare y Volman, 2006). Junto ao FMS e FMF, outras ações que se destacaram foram a Iniciativa de Combate ao Terrorismo na África Ocidental, que direcionou US$100 milhões em recursos e assistência técnica; o Programa Safe Skies para a segurança nos aeroportos africanos; a Iniciativa Pan-Sahel, voltada para a defesa de fronteiras em países como Chade, Argélia, Marrocos, Nigéria, Senegal, Tunísia, Mali, Mauritânia e Níger, a Força-Tarefa Conjunta Combinada da África (CJTF-HOA) que capacitou quadros militares em países como Etiópia, Djibuti, Quênia, Burundi, Tanzânia e Ruanda, o International Military Education and Training (IMET); e, principalmente, o Comando dos Estados Unidos para a África (AFRICOM) (Oliveira, 2019).
Direcionado para atuar em operações, exercícios, capacitação de soldados, cooperação com países africanos, dentre outros objetivos pertencentes à esfera da segurança, o AFRICOM se caracteriza pela atuação e críticas à sua funcionalidade. No que diz respeito a atuação, vale destacar o fornecimento de equipamentos militares para a Missão de Paz da União Africana para a Somália. Referente às críticas, a não participação dos países africanos em sua criação gerou a repulsa da quase totalidade das nações africanas em sediarem tal iniciativa, que acabou sendo locada na Alemanha (Cardoso, 2020). Tais críticas, somadas ao predomínio de investimentos estadunidenses na dimensão da segurança, se comparada com saúde e economia, reforçavam uma das características já vistas em administrações anteriores, qual seja, de atuar no continente quando este passa a ser englobado em interesses sistêmicos de Washington.
Semelhantemente a Bush, Vladimir Putin, ao assumir a presidência da Rússia em 2000, também buscou fortalecer a reaproximação russo-africana, em grande medida viabilizada por uma retomada progressiva do dinamismo da economia russa, que permitiu ao país a adoção de uma política externa mais independente e alinhada à visão de um mundo multipolar (Besenyő, 2019). Nesse contexto, ao longo do ano de 2001, o presidente russo recebeu visitas do Primeiro-Ministro da Etiópia e dos presidentes de Argélia, Guiné, Egito, Nigéria e Gabão, e entre aquele ano e 2005, diversas das embaixadas e centros culturais que haviam sido fechados na década anterior foram reabertos (Fidan y Aras, 2010; Besenyő, 2019).
Outro sinal importante dessa renovada aproximação foram as visitas realizadas por Putin ao continente. Em 2005, o presidente russo visitou o Egito, em 2006, a Argélia, o Marrocos e a África do Sul, e, em 2008, a Líbia. Essas viagens foram marcadas por um profundo caráter simbólico. Para além de englobar a primeira visita de um líder russo a um país ao sul do Equador, o fato de terem sido visitados países dos extremos geográficos do continente foi compreendido como uma demonstração do interesse russo pela retomada das relações com toda a África (Fidan y Aras, 2010). Nesse mesmo contexto, vale destacar a interação econômica entre Moscou e os países africanos, que experimentou um significativo fortalecimento. Enquanto em 2001 o total das relações comerciais bilaterais foi de cerca de US$1.5 bilhões, em 2005 esse valor já havia mais do que duplicado, atingindo um total de US$3.1 bilhões (ITC, 2023).
O incremento das relações comerciais também se beneficiou de ações tomadas por Moscou nesse contexto de busca por restabelecimento dos laços com o continente, vide a criação, em 2002, do Conselho Empresarial Rússia-África – composto por empresários atuantes em setores como os de petróleo, gás, finanças e turismo na África. Tal política adotada pela administração Putin, direta ou indiretamente, incentivou a crescente presença de empresas russas no continente africano. Como demonstra Besenyő (2019), desde o início da década de 2000 é possível verificar um crescimento substancial de empresas russas atuando no continente africano – especialmente em setores ligados à produção de commodities (principalmente de minérios raros – como urânio – e energéticas – como petróleo e gás).
Nesse sentido, empresas estatais russas, como a Gazprom e a Lukoil, além de outras gigantes, como Stroitransgaz, Soyuzneftgas e Rostneft, têm atuado em países como Nigéria, Argélia, Gana, Costa do Marfim, Líbia, Egito e Sudão, entre outros, justamente na exploração de petróleo e gás natural (Faleg y Secrieru, 2020). Cumpre ressaltar, inclusive, que a Gazprom, em conjunto com a empresa argelina Sonatrach, é responsável pela exportação de 40% do gás que é consumido pela Europa (Besenyő, 2019). Ainda, empresas como a Evraz Group e a Renova também têm aumentado sua presença no continente, estando presentes em países como África do Sul, Congo, Gabão, Guiné, Libéria, Botsuana, Namíbia e Burkina Faso, e atuando na exploração de minérios como ouro, níquel, manganês, diamante e urânio. Além dessas, a Rosatom, empresa do setor de energia nuclear, já assinou contratos com diversos países para a construção de usinas nucleares, dentre os quais Egito, África do Sul, Nigéria, Quênia, Uganda e Tanzânia (Besenyő, 2019; Faleg y Secrieru, 2020).
De Obama a Trump, de Medvedev ao retorno de Putin: Estados Unidos, Rússia e África na década de 2010
Os anos finais da década de 2000 e a década de 2010 foram marcados por mudanças políticas na Rússia e nos Estados Unidos que impactaram nas relações com o continente africano. Inicialmente, no que concerne Moscou, a transição de Putin para Medvedev (2008-2012) foi acompanhada pela continuidade na política externa adotada até então, e, consequentemente, na manutenção da busca por fortalecer laços com os países africanos. No âmbito político, uma das iniciativas adotadas foi a realização de visitas presidenciais, como ao Egito, à Namíbia e a Angola, em 2009, e à Argélia, em 2010. No âmbito econômico, o interesse russo ganhou destaque a partir de três áreas. A primeira diz respeito às trocas comerciais, que se em 2005 haviam alcançado US$3.1 bilhões, em 2010, atingiram a marca de cerca de US$7.4 bilhões (ITC, 2023).
A segunda refere-se à continuidade em desenvolver iniciativas voltadas a incentivar a maior presença de empresas russas em solo africano. Enquanto em 2002 houve a criação do “Conselho Empresarial Rússia-África”, em 2009 foi criado o “Comitê de Coordenação em Cooperação Econômica com os Países da África Subsaariana”, unindo mais de 90 entidades russas – agências ministeriais, organizações e companhias de diversos tamanhos – com o objetivo de promover os interesses empresariais russos no continente (Fidan y Aras, 2010), em 2011 foi realizado o primeiro Fórum Empresarial Rússia-África, na Etiópia, reunindo representantes das principais empresas russas de energia, mineração, transportes e finanças, além de representantes de diversos países africanos, como Chade, Mali, Sudão e Etiópia (Besenyő, 2019). Já a terceira área refere-se à segurança, mais especificamente à venda de armamentos, cujo montante entre 2000 e 2011, somou em torno de US$1 bilhão, resultado da venda para 22 países africanos (SIPRI, 2023).
Se na transição entre Putin e Medvedev houve a continuidade na política externa, no que diz respeito a transição de governo entre Bush e Obama (2009-2017), o que se viu foi a tendência em mudar a atuação dos EUA no cenário internacional. Inicialmente, para além de romper com a GcT, pontos como a priorização do conceito ampliado de segurança, o fortalecimento do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, a atuação na desnuclearização do Irã e da Coreia do Norte, a defesa da democracia, dos direitos humanos, da liberdade individual, da prosperidade socioeconômica e do multilateralismo, expresso na atuação junto ao G20, ao FMI e ao Banco Mundial, e no fortalecimento de laços com potências europeias e emergentes, sem mostraram relevantes para a inserção internacional defendida pelo governo Obama (NSS 2010). Evidentemente que, diante deste novo cenário, as expectativas com relação à interação EUA-África também se mostraram presentes, inclusive, eram reforçadas tanto pelo discurso realizado por Obama no Parlamento de Gana, em 2009, quanto na criação da U.S. Strategy Toward Sub-Saharan Africa de 2012.
Diferentemente do governo Bush, contudo, a administração Obama manteve o interesse na economia e, destacadamente, na segurança. Em relação à economia, os principais objetivos eram aumentar os investimentos no continente, a abertura dos mercados africanos aos produtos estadunidenses e o alcance da AGOA (Otavio, 2021). No entanto, quando analisados os números, o que se viu foi a dificuldade dos EUA em ampliar o comércio com países africanos. Enquanto no primeiro ano da administração as exportações e as importações para a África totalizaram US$24.33 bilhões e US$62.4 bilhões, respectivamente, em 2017, o que se viu foi a redução destas, com as exportações atingindo US$22.07 bilhões e as importações US$33.4 bilhões (ITC, 2023).
Referente a segurança, a administração Obama manteve as iniciativas desenvolvidas durante o governo Bush, bem como o repasse de recursos para países considerados estratégicos. Em números, vale ressaltar o FMF que entre 2010 e 2011, recebeu em torno de US$38 milhões distribuídos para diversos países, destacadamente, Libéria (US$9 milhões), Marrocos (US$9 milhões), Nigéria (US$4 milhões), Tunísia (US$4.9 milhões), Djibuti (US$2.5 milhões), Etiópia (US$2 milhões), República Democrática do Congo (US$1.5 milhões) e Quênia (US$1 milhão). Além do FMF, destacaram-se países considerados estratégicos, como o Egito, que entre 2009 e 2010 havia recebido em torno de US$1.3 bilhões em assistência militar; o Djibuti e Etiópia, países que, nos anos iniciais do governo democrata, receberam, juntos, aproximadamente a metade dos US$12.55 milhões do FMF (Tieku, 2018).
Ainda no campo da segurança, outra iniciativa adotada foi o apoio à intervenção militar voltada à mudança de regime, como visto na Líbia, país então sob a administração de Gaddafi. Durante a chamada Primavera Árabe, o país experimentou um contexto de instabilidade política, sendo posteriormente alvo de uma intervenção militar arquitetada no Conselho de Segurança da ONU por EUA, França e Inglaterra, via instrumentalização da Responsabilidade de Proteger (R2P) (De Waal, 2011). Por um lado, o respaldo conquistado com a R2P levou à aprovação das resoluções 1970 e 1973 (Security Council, 2011a, 2011b), à intervenção da OTAN e, consequentemente, à eliminação da administração Gaddafi. Por outro, refletiu outra característica importante da política externa estadunidense: priorizar seus parceiros europeus, que tinham interesse na intervenção.
De modo geral, a tendência encontrada nos governos Medvedev e Obama, voltada às dimensões político-diplomáticas, da economia e da segurança, também foi encontrada no retorno de Putin. No que diz respeito à segurança, uma das iniciativas que se manteve presente foi a venda de armamentos para países do continente. Contudo, o que se viu foi uma redução substancial no volume entre 2012 e 2013, tendência revertida até 2017, quando um novo declínio passou a ser verificado, atingindo, em 2020, valores inferiores àqueles da década de 1990 (SIPRI, 2023). Como destaca Besenyő (2019), as vendas de armamentos russos têm sido potencializadas por diversos elementos, dentre os quais se destacam o fato de que diversas forças armadas africanas tiveram parte expressiva de seu arsenal construído com equipamentos soviéticos, e também a resistência de outros parceiros (como os EUA) em vender tais equipamentos para alguns países do continente.
Esses mesmos elementos também têm contribuído para fomentar uma cooperação militar mais ampla entre Moscou e os países africanos, resultando na assinatura de mais de 20 acordos de cooperação bilateral desde 2015 (Marten, 2019). Outro elemento de destaque na reaproximação russa com a África nessa dimensão é a crescente presença de empresas privadas de segurança no continente, dentre as quais a mais conhecida é o chamado Grupo Wagner (Østensen y Bukkvoll, 2021). Com atuação em países como República Centro Africana, Sudão, Moçambique, Mali e Líbia, o grupo ganhou destaque especialmente a partir de 2022, diante da decisão do governo do Mali de exigir a retirada das tropas francesas estacionadas no país e da crescente atuação do grupo nas missões de contraterrorismo no país africano (Duursma y Masuhr, 2022).
Já no âmbito econômico, iniciativas como trocas comerciais, perdão de dívidas e criação de iniciativas direcionadas a fortalecer os laços russo-africanos tiveram destaque. No comércio, ao longo da segunda década do século XXI, esse crescimento se viu ainda mais acelerado. Ainda potencializadas pelo incremento das exportações russas para a África, as relações comerciais entre Moscou e os países africanos atingiram seu maior volume em 2019, com um total de cerca de US$20.3 bilhões – um crescimento de mais de 1.200% com relação ao volume do início do século XXI (ITC, 2023). Neste mesmo contexto, também em 2019, foi realizado o primeiro Fórum Rússia-África, simbolizando a criação de iniciativas focadas no fortalecimento dos laços bilaterais.
Primeiramente, a importância do Fórum encontra-se atrelada à adesão africana, visto que o evento contou com representantes de todos os países do continente, sendo 48 chefes de Estado, bem como de lideranças de sete das maiores Organizações Regionais Africanas, as quais, para além de participarem das reuniões com os demais chefes de Estado, também participaram de um encontro à parte com o presidente russo. Em segundo lugar, o destaque dado ao evento diz respeito aos temas discutidos, como questões ligadas à integração econômica, aos investimentos russos no continente africano, à cooperação em educação, à criação de projetos nas indústrias de gás, petróleo e energia nuclear, à segurança no continente e à manutenção da soberania econômica africana, entre outros (Marten, 2019).
Para além da assinatura de diversos contratos de mineração e exploração de energia nuclear com países do continente (Mezyaev, 2020), destaca-se como resultado do encontro o terceiro ponto marcante desta dimensão econômica, no caso, o perdão de dívidas, uma vez que a administração Putin cancelou mais de US$20 bilhões em dívidas de países africanos com a Rússia (Marten, 2019; Mezyaev, 2020). Tal iniciativa reforça um posicionamento que já havia sido adotado anteriormente, quando, em 2008, foi anunciado o perdão de US$16 bilhões em dívidas africanas, e em 2012 de outros US$20 bilhões (Besenyő, 2019). A título de exemplo, dentre os países que tiveram suas dívidas canceladas ainda nos anos 2000 está a Argélia. Em sua visita ao país, em 2006, Putin anunciou que Moscou anularia toda a dívida argelina de US$4.7 bilhões, o que foi seguido por um anúncio do governo africano de que compraria um pacote de equipamentos militares russos com um valor total de US$7.5 bilhões (Fidan y Aras, 2010).
Tanto a economia quanto a segurança são dimensões que se atrelam à terceira encontrada na relação tanto dos Estados Unidos quanto da Rússia com o continente africano, qual seja, a político-diplomática. No caso de Moscou, um primeiro ponto que se destaca nesta dimensão são as visitas oficiais a países africanos, como ocorridas na África do Sul, em 2013 e em 2018, e no Egito, em 2015 e 2017. Como destacam Olivier e Suchkov (2015), essas visitas de alto-nível resultaram na assinatura de diversos acordos bilaterais, sendo ambos os países vistos por Moscou como importantes parceiros econômicos e políticos. Junto às visitas oficiais, outra iniciativa importante nesta dimensão se expressa, também, nos documentos oficiais russos, prática já vista durante a primeira passagem de Putin pela presidência russa.
Inicialmente, o reflexo disso pode ser visto em 2007, ano de publicação do documento “Uma Visão Abrangente da Política Externa da Federação Russa”, que estabelecia a necessidade de Moscou participar ativamente da resolução de conflitos na África, promover o cancelamento das dívidas africanas, contribuir para o treinamento de capital humano e incrementar a ajuda humanitária ao continente. Nesse contexto, o documento reforçava que o desenvolvimento de relações amistosas com a África, marcadas por cooperação e interesses mútuos, permitia à Rússia se apoiar no continente africano para promover seus interesses internacionais e alcançar seus objetivos econômicos (Fidan y Aras, 2010). No ano seguinte, um novo Foreign Policy Concept foi lançado, o qual também deixava clara a inflexão com relação ao relacionamento com o continente, inclusive, entendendo que a África e suas organizações regionais são fundamentais para a política externa russa. No que concerne à passagem atual de Putin na presidência russa, o Foreign Policy Concept foi mantido, inclusive, tendo novas versões lançadas em 2013 e em 2016.
Se no caso russo o interesse pelo continente africano mantinha-se cada vez mais em destaque, quando analisada a administração Trump (2017-2021), a tendência em manter o foco apenas nos âmbitos econômico e securitário se mostrou constante. Em linhas gerais, a política externa adotada pela administração Republicana destacava o unilateralismo em detrimento ao multilateralismo, bem como buscava atender seu eleitorado, que desconsiderava, o livre-comércio, os compromissos externos, a imigração e o intervencionismo por questões consideradas humanitárias, a retirada dos EUA dos acordos e organizações internacionais, dentre outras escolhas que representavam a ruptura com a política externa adotada pelo governo Obama (Otavio, 2021).
Conforme indicado anteriormente, quando analisado a interação entre EUA e África durante a administração Trump, o que se viu foi a continuidade pelo interesse na economia e na segurança. No âmbito econômico, o interesse pelo Golfo da Guiné convergiu com a criação da Trump Administration’s Prosper Africa Initiative. Inaugurada em 2019, na Cúpula EUA-África, tal iniciativa trazia como principal objetivo fortalecer as relações econômicas entre as partes como forma de se contrapor à presença chinesa no continente. Vale ressaltar que o desejo de romper com o avanço chinês já era destacado na NSS de 2017, inclusive ressaltando, dentre outras características, que a China era favorecida no comércio mundial, como também que seu avanço no mundo, como visto na África, representava uma afronta aos EUA (Otavio, 2021). Tal objetivo, todavia, mostrou-se um desafio, uma vez que tanto no Investimento Externo Direto (IED), quanto no âmbito comercial, as cifras estadunidenses haviam diminuído (Cook e Williams 2020).
Referente ao âmbito da segurança, Washington priorizou as regiões do Magreb, da África Oriental e do Chifre da África – espaço compreendido conexo ao Oriente Médio e de população predominantemente muçulmana, logo, na perspectiva da administração Trump, propenso ao avanço do terrorismo –, e a aproximação junto a países considerados estratégicos para a estabilização do continente, como Nigéria, África do Sul, Argélia, República Democrática do Congo, Etiópia e Senegal (Schraeder, 2018). A priorização de tais países e regiões buscava englobar a África em dinâmicas de estabilidade e de paz voltadas para o sistema internacional e no combate ao terrorismo, inimigo considerado prejudicial aos interesses dos Estados Unidos, e não necessariamente direcionadas a atender as demandas africanas. Reflexo disso pode ser encontrado no destaque dado a iniciativas de contraterrorismo, como a Trans-Saharan Counter-Terrorism Initiative (TSCTI), o CJTF-HOA, a IMET e, destacadamente o AFRICOM, além de iniciativas como o acordo com o Níger e o uso de bases no Djibuti, na Itália e na Tunísia para a realização de ataques contra grupos considerados terroristas (Otavio, 2021).
Destoando da relevância dado ao combate ao terrorismo, as demandas africanas oram colocadas em segundo plano, resultando, por exemplo, no desinteresse em atuar na pacificação da Líbia, compreendendo que sua estabilidade deveria ser realizada pelas potências europeias (Schraeder, 2018). Além do desdém no caso líbio, as críticas à administração Trump dizem respeito ao tratamento dado à questão migratória e ao modo de atuar no que diz respeito à COVID-19. No que diz respeito à imigração, as críticas africanas eram respostas a políticas como o Ato Executivo nº 13.769 de 2017 que, mesmo sendo contestado pela Suprema Corte, trazia como objetivo limitar a entrada no país de africanos procedentes de Líbia, Somália e Sudão. Referente a COVID-19, vale relembrar o documento 2020/0018, criado pela Federal Emergency Management Agency (FEMA), que limitava à exportação de equipamentos considerados fundamentais para combater a pandemia (FEMA, 2020).
Biden, Putin e as semelhanças e divergências sobre o continente africano
Em artigo publicado em 2020, intitulado de “Why America Must Lead Again: Rescuing U.S. Foreign Policy After Trump”, o ainda candidato à presidência dos EUA, Joe Biden, não apenas criticava o governo Trump, como também destacava que os EUA deveriam retomar o protagonismo no cenário internacional, defendendo os direitos humanos, a difusão da democracia e o combate ao autoritarismo no âmbito internacional, destacando China e Rússia como os países a ser derrotados. Já como presidente, em discurso realizado em fevereiro de 2021, e na NSS de 2022, Biden reafirmava que Pequim e Moscou deveriam ser tratados como concorrentes, uma vez que ambos se encontravam na divisão defendida por Washington de um mundo marcado entre democracias e autocracias. Enquanto a Rússia é vista como um inimigo imediato, a China é apresentada como um concorrente a médio e longo prazo, cuja coexistência com os EUA poderá ser pacífica (NSS, 2022).
Diante deste contexto, Washington passou a considerar importante ampliar sua atuação no continente africano, tanto na NSS de 2022 quanto na U.S. Strategy toward sub-saharan Africa de 2022, destacando áreas prioritárias para sua interação - no caso, se aproximar de Estados considerados democráticos e livres, no combate à pandemia, na criação de iniciativas que fortalecessem a relação econômica entre as partes e nas questões climáticas, como também na contenção do avanço dos adversários no continente. Desde então, o que se viu foi o predomínio de política externa reativa (Boys, 2022) e, nesse contexto, é possível encontrar duas formas de atuação dos EUA, uma pautada no assistencialismo e a outra no pragmatismo, como instrumentos para ampliar sua inserção na África.
No assistencialismo, um dos principais objetivos diz respeito ao enfrentamento da pandemia da COVID-19. No caso, vale destacar que uma primeira iniciativa da administração Biden foi passar a doar vacinas para os países africanos, como o fornecimento de 17 milhões de doses da Johnson & Johnson (The White House, 2021). Referente ao pragmatismo, expresso principalmente nas metas apresentadas no The U.S.-Africa Leaders Summit de 2022, a administração Biden vem demonstrando interesse em atender demandas africanas, bem como fortalecer laços no âmbito econômico com os países do continente.
No que diz respeito às demandas, além de demonstrar interesse em atender de modo igualitário os países, indicando que não apenas Estados como Nigéria, Quênia, e África do Sul serão estratégicos, mas também pequenos e médios Estados africanos (NSS, 2022), a administração Biden ressaltou o interesse em atender iniciativas surgidas no continente. Vale lembrar que se no início do século XXI, o dinamismo africano era representado por iniciativas como a criação da Nova Parceria Econômica para o Desenvolvimento da África e a transição da Organização da Unidade Africana para UA, a partir de 2010, as transformações encontradas no continente são refletidas no Programa de Infraestrutura para o Desenvolvimento da África (PIDA), lançado em 2010 e, principalmente, na Agenda 2063 – A África que queremos, iniciativa criada em 2015 pela UA, que possui em seu escopo objetivos considerados centrais para o desenvolvimento da África, bem como uma nova inserção internacional do continente (Oliveira y Otavio, 2021).
Neste caso, a nova inserção internacional volta-se a encontrar outro lugar para a África no cenário internacional, buscando tornar o continente um ator forte e influente no sistema internacional, com maior participação em temas referentes aos bens comuns globais, no combate a quaisquer formas de racismo, xenofobia e outras práticas de intolerância, no ativismo nas instituições multilaterais e na coexistência pacífica. Além disso, vale destacar o interesse pela maior integração continental como meio de se contrapor à ingerência de potências extrarregionais, o interesse pela cooperação internacional favorável ao continente e a crítica à imposição de sanções consideradas indevidas aos países africanos (Oliveira y Otavio, 2021).
Diante de tais demandas, bem como do destaque feito na NSS de 2022 de que a quantidade de votos africanos é impactante no sistema ONU, a administração Biden demonstrou apoiar a entrada da UA como membro fixo do G-20; a defesa de reforma do Conselho de Segurança que garanta um assento permanente para algum representante africano; e a promessa de repassar US$55 bilhões para a efetivação da Agenda 2063. Além disso, vale destacar o objetivo de atuar em processos de pacificação em países como Camarões, República Democrática do Congo, Etiópia, Moçambique, Nigéria, Somália e na região do Sahel, ainda que tais ameaças sejam representadas como atividades terroristas (NSS, 2022).
Também na dimensão pragmática, porém no âmbito comercial, destacam-se a criação do acordo de livre comércio com o Quênia e o repasse de US$1.3 bilhões direcionados à infraestrutura focada na ampliação do comércio entre EUA e países africanos (Usman, Ovadia y Abayo, 2022). É possível destacar três motivos que indicam o interesse estadunidense em fortalecer laços comerciais com os países africanos. Primeiramente, por se tratar de um continente marcado pela população em sua maioria jovem e em acelerado processo de urbanização, características que caminham lado a lado ao crescimento do consumo. Um segundo motivo diz respeito ao African Continental Free Trade Area (AfCFTA), cuja expectativa é de que as trocas comerciais até 2030 alcancem a cifra de US$6.7 trilhões (Hruby, 2021).
Já o terceiro motivo diz respeito à busca por fortalecer laços econômicos entre EUA e os países africanos. Tal cenário, todavia, mostra-se cada vez mais desafiador, visto que, se em 2017, por exemplo, as exportações e importações relacionadas à África equivaleram a US$22.07 bilhões e US$33.41 bilhões, respectivamente, em 2019, tais valores foram de, respectivamente, US$22.15 bilhões e US$23.7 bilhões (ITC, 2023). Inclusive, em 2019, o continente contabilizou apenas 1.4% do total comercializado pelos EUA em seu comércio internacional (Cook y Williams, 2020). No que diz respeito ao IED, as cifras também não representaram avanços significativos na interação entre as partes, havendo, na verdade, o declínio do Investimento direcionado à África. Mesmo quando se leva em consideração o conjunto de IED advindo de empresas estadunidenses em 2019, os valores destacados para a África equivaliam a 0.7% deste total (Cook y Williams, 2020).
De modo geral, o que se percebe é a busca em se contrapor à presença de potências consideradas nocivas aos interesses de Washington, notadamente China e Rússia. Enquanto na administração Trump, Pequim e Moscou eram apresentados como concorrentes aos EUA no sistema internacional, porém, no que concerne ao continente africano, apenas a China era apresentada como ameaça, na administração Biden, ambos são considerados como representando ameaças - tanto no âmbito sistêmico, quanto no continente africano.
No caso chinês, a concorrência mostra-se complexa, reflexo disso pode ser encontrado no âmbito comercial, já que desde 2009 Pequim se mantém como principal parceiro comercial do continente africano (Otavio, 2021). Além disso, vale destacar o âmbito da cooperação, no qual a China, em 2017, já havia investido US$19.4 bilhões em infraestrutura no continente, destacadamente na PIDA, valor muito acima daqueles advindos de países como Estados Unidos, França, Alemanha, Reino Unido, Japão e Índia, que, somados, chegavam a US$6.94 bilhões (Oliveira y Otavio, 2021). Paralelamente a tal cenário, vale ressaltar a cooperação voltada ao âmbito da saúde, uma vez que a China destacava, via discurso Fighting COVID-19 Through Solidarity and Cooperation Building a Global Community of Health for All o apoio médico e hospitalar aos países africanos, refletido no comprometimento em fornecer mais de um bilhão de doses de vacina para a África (60% doadas e 40% desenvolvidas via apoio chinês a empresas africanas); desenvolver dez projetos médicos; e enviar 1.500 profissionais de saúde (Republic of China, 2020).
Referente à Rússia, para além de buscar que Moscou não obtenha apoio de países africanos no conflito com a Ucrânia, a administração Biden sente-se desafiada, visto que, paralelamente ao distanciamento adotado pelo governo Trump, a Rússia passou a ampliar seus laços com os países africanos. Exemplo disso pode ser encontrado na versão de 2023 da Foreign Policy Concept russa, na qual a África recebe uma seção específica e mais alargada. Nela, para além de um detalhamento maior do que se estabelecia anteriormente em termos de cooperação e do respeito à noção de “resoluções africanas para problemas africanos”, há uma mudança substancial: se estabelece uma clara crítica à atuação das potências tradicionais no continente africano, bem como a proposição de que Moscou busca se colocar como um ator distinto e influente no desenvolvimento mundial. Grosso modo, diante do maior engajamento russo com a África, mostra-se sintomática a afirmação feita pelo então General do AFRICOM, Stephen Townsend, de que a presença russa seria a segunda principal ameaça existente aos EUA no continente, ficando atrás apenas do terrorismo (Lamothe, 2019).
CONCLUSÕES
A análise realizada ao longo deste artigo, nos permite verificar, com clareza, a existência de um interesse renovado, tanto dos EUA quanto da Rússia, pelo continente africano no século XXI. Como destacado inicialmente, ao longo da Guerra Fria a África se consolidou como um espaço de disputa entre as duas superpotências, recebendo, nesse contexto, grande atenção de ambas. As motivações para esse interesse, todavia, não estavam associadas essencialmente às relações mantidas com os parceiros africanos, mas sim à busca das superpotências de, por meio dessas relações, conquistar novos aliados e, assim, fortalecer o seu lado na disputa bipolar. Como consequência disso, com o encerramento da Guerra Fria e as transformações ocorridas nas relações internacionais nesse contexto, a África perdeu grande parte de sua relevância estratégica, sendo, em grande medida, deixada de lado nas políticas externas tanto dos EUA quanto da Rússia. Novamente, as motivações de ambos os atores nesse movimento de afastamento eram semelhantes, dizendo respeito à adequação à ideia de uma Nova Ordem Global - com todas as suas consequências.
Tal realidade passou a se transformar progressivamente a partir da segunda metade da década de 1990. Impulsionados por motivações distintas e em ritmos distintos, Washington e Moscou deram início a processos de reaproximação da África. Enquanto no caso russo o elemento determinante para esse movimento foi uma inflexão de sua política externa (marcada por uma crescente crítica ao alinhamento que vinha sendo promovido ao Ocidente), no caso estadunidense ele foi resultado da inauguração de uma nova estratégia que buscava reforçar a posição estadunidense de liderança na ordem global pós-Guerra Fria.
Foi justamente a partir dessa inflexão que, desde o início do século XXI, a África passou a, com ainda mais força, receber atenção de ambas as potências. Uma vez mais, todavia, as motivações de ambas eram - e têm se mantido - bastante distintas. Por um lado, a Rússia tem mantido (e reforçado) um entendimento dos países do continente africano como potenciais parceiros em termos não apenas do fortalecimento de sua posição nas relações internacionais, mas também na própria transformação da ordem internacional - visando a garantir a consolidação de uma ordem internacional multipolar, marcada por um maior protagonismo dos atores do Sul Global. Com isso, Moscou tem buscado não apenas o incremento dos laços nas dimensões política, econômica, securitária e diplomática de forma simultânea, mas também demonstrar que seu interesse não se limita a alguma região - ou dimensão - específica do continente, mas sim à sua totalidade, e que sua busca é pela construção de relações de caráter horizontal com os parceiros africanos.
Por outro lado, o incremento na aproximação estadunidense a partir do início século XXI se deu, em grande medida, motivado por questões securitárias, especialmente a incorporação do continente africano na Guerra Global ao Terror. Enquanto essa dimensão se manteve ao longo das últimas décadas, também passou a ganhar força, progressivamente, a busca estadunidense por se contrapor à crescente presença (diplomática, econômica e securitária) de outros atores no continente africano - especialmente da China e, mais recentemente, da Rússia. Nesse sentido, o que é se pode verificar com considerável clareza é que, ao longo desse período, o incremento dos laços com a África buscado pelos Estados Unidos tem sido motivado mais por uma tentativa de diminuir uma eventual influência que possa ser exercida por outros atores no continente do que propriamente por elementos ligados à sua própria relação com os países africanos. Parece claro, portanto, que no que diz respeito às relações de EUA e Rússia com a África no século XXI, não há uma nova Guerra Fria. Isso, todavia, se deve muito mais às ações e motivações de Moscou do que às de Washington, uma vez que esta última parece reproduzir a lógica de atuação que orientou a aproximação estadunidense da África ao longo do conflito bipolar - a despeito de não ser essa a lógica que orienta a Rússia no século XXI.
notas
1 Por Ordem Internacional Liberal ou Ordem Internacional Americana, entende-se como um “sistema resultante de alianças de segurança, instituições multilaterais e políticas econômicas relativamente abertas” (Nye, 2019, p. 67)
2 A única visita antes disso havia sido realizada em 1992, por Frederik de Klerk, então presidente da África do Sul, ainda sob o regime segregacionista do apartheid.
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CONFLITO DE INTERESSES
Os autores declaram que não há conflitos de interesse relacionados ao artigo.
CONTRIBUIÇÃO DA AUTORIA:
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